domingo, 17 de novembro de 2013

Prazer em bem mais que 15 segundos



       A filosofia nietzschiana é farta de profecias da realidade atual. Tanto é assim que atinando com imagem dos ''últimos homens'' temos a estranha sensação de nos deparamos com nós mesmos, num encarar especular que, se a princípio angustia, também nos desobriga por um instante de manter o riso sardônico de canto de lábio, para então rirmos abobados nossa mediocridade. E imagine se nos interpussessem, ainda mais vividamente do que como falou Zaratustra, um espelho desse? Foi o que fez, magistralmente, a companhia Luna Lunera, com a peça ''Prazer'', em cartaz do dia 11 a 22 de dezembro no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte (que recomendo muito, muito fortemente). Ora, nessa peça temos quatro amigos, que, de quebra, ''fossêmos artistas e não pessoas normais'', poderiam ser qualquer um de nós ali no palco do ''drama da vida privada''. Apesar de inquietações, apesar de angústias, apesar de impasses cotidianos, tentam eles - ou tentamos nós - a coragem de buscar a alegria. Mas, por Deus, como tentamos desacreditadamente mal! Como se não aprendêssemos com o ''eterno retorno'' de nossos erros, erramos uma e mais uma vez. E, sobretudo, num erro capital: o erro da busca da perfeição. Queremos porque queremos, por mais sôfrego que isto nos seja, sermos o melhor médico, o melhor marido, o melhor primo, o melhor irmão, o melhor sucedido, etc; afinal há que se sê-lo, é nosso acordo tácito com a dita cuja sociedade. Agora, imaginem só: homens e mulheres que, muito embora estejam susceptíveis a toda a sorte das variáveis probabilísticas complexas dessa nossa vidinha mundana, desejam só, e somente só, a certeza da realização exata dos seus desejos particulares. E nisso, todos ao mesmo tempo, com desejos muitas vezes conflitantes e que não se satisfazem a cada realização. Ora, daí a epidemia de transtornos de humor (sub ou hiper)diagnosticada. E daí a epidemia de prescrições de inibidores seletivos da receptação de serotonina; afinal, há que se manter as aparências, num é mesmo? E, assim, com a lágrima engolida junto ao remédio, afirmamos, num uníssono, em alto e bom tom, sermos felizes, piscando logo os olhos uns aos outros, como querendo manter a quebrantável realidade intocada na sua fragilidade. Eis a autoenganação coletiva. Autoenganação essa que - nossa! - como nos consome, como nos exaure. É tão difícil ser perfeito sem sê-lo. É, para os atores, a mais dificilmente interpretada das peças teatrais. Tão difícil que, muitas vezes, perdidos no afã de nossos processos conflitivos anônimos, sobrevém-nos a ideia suicidógena; essa que, se se não realiza, ou se transveste de problematização eufemísticas ou se abafa sob escapismos efêmeros ( Problematização suicida)...
       Mas, pensem só, e se déssemos fim a essa peça teatral? E se abandonássemos esse baile de máscaras? E  se do baile saíssemos a dançar na chuva confessando libertadoramente nossas imperfeições?! Quão mais fácil a vida, quão mais prazerosa ela!       

Pois bem, vejam a peça e gozem bem mais de 15 segundos...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Obrigado, Doutor!



       
      18 de outubro, dia do médico. E, a contra gosto,  Ernesto Pereira fora dispensado da sua diligência diária. Como se fosse dia 1 maio, outorgaram-lhe folga para que tomasse, enfim, merecido descanso. Precisava estar muito bem apresentável, alegou o diretor médico do hospital, afinal tinha homenagem a receber esta noite na nobre Associação Médica. Seria esse, aliás, evento muito pomposo, sem economias de comes, de bebes e, claro, de bajulação. Já esperando por isso, Ernesto relutava em comparecer, muito humilde que era. Mas tanto insistiram os presidentes da instituição, dizendo da importância da data, sobretudo num tempo de desprestígio da figura médica, que o clínico acabou por ceder aos caprichos. Passara, então, o dia todo inquieto, sem saber o que fazer sem pacientes que cuidar; os quais, por sua vez, estranhando a ausência do bom doutor, que sempre lhes dedicava um dedo de prosa cotidiano, tiveram tempo para atinar, ora, que aquele dia era dia do médico. Dona Maria de Lourdes, muito espirituosa que era, se apressou em dizer, assim, que tal dia não podia passar em branco, e convocou a ala leste a preparar alguma coisinha para o querido Doutor Ernesto Pereira, que, se não pôde vir pela manhã, certamente lhes visitaria a noite. Mas, à noite, estava seu Ernesto na Associação Médica, deslocado como um quadril em Ortolani positivo, numa festa glamorosa que não  lhe combinava. Tanto que, numa roda de conversa, em que jovens médicos gabavam a modernidade dos métodos complementares, Ernesto muito desgostoso arrumara jeito de escapulir, deixando os colegas  enganados nas suas conversas tecnológicas. Saíra à francesa e, com um aperto no coração, pela ausência injustificada para com seus doentes, recobrou sua vontade e, sim, voltara ao hospital. Lá o aguardavam ansiosos os pacientes, que, ao som do elevador, se aquietaram e apagaram as luzes, para pregar a surpresa. Intrigado, Ernesto adentrara no breu da ala leste, tomando grande susto quando, de repente, acendem e entoam a canção de parabéns. Dona Maria de Lourdes, com o bolo de cenoura que mandara a filha preparar, logo se achega ao parabenizado, estendendo-lhe a vela e exclamando que ‘’sabia, doutor, que o senhor viria’’. 
          Já lá na Associação Médica outro tanto acontecia: o bom doutor tinha sumido e, para a homenagem, - que coisa! – não tinham nenhum outro sequer para lhe substituir a altura.


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A minha namorada


Conto premiado como Primeiro Lugar no Concurso Cultural do II Congresso da SAMMG

             Tivéssemos filhos, essa seria, numa analogia cômica, a estória  ''how I met your mother'' que lhes contaria. De todo modo, ainda que não os tenha, é certo que os teremos, muitos e muitos, num futuro breve, que vivo a primar. Por agora, no entanto, já me contenta namorá-la, e é desse relacionamento que conto aqui:

            A conheci desde há muito, ainda na minha tenra infância. Poderia cá mentir que me lembro exatamente desse primeiro encontro, na intenção piegas de sugerir ‘’amor a primeira vista’’, mas realmente me escapa a memória daquele cérebro imielinizado. Apesar disso, conta minha vó que aos 3 anos já eu brincara muito com ela, na mágica fantasia de criança.

           Passada essa fase, a vida ocupou-se de nos afastar. Talvez a minha rebeldia impensada dos tempos turbulentos da adolescência a tenha assustado. Mas, que coisa, como mulher de vagabundo, ela relutara em ficar comigo, regressando meiga para me cativar. Hoje posso dizer que foi justamente ela quem soube me dar jeito na vida. E nessa vida a dois, passamos pelas mesmas fases interrelacionais por que passam os casais típicos.

            Primeiro a paixão. Nos entregamos sofregamente, virando noites e noites. Por esse calor febril também brigamos, como brigamos. E isso porque eu, num afã desesperado e possessivo a queria imediatamente para mim, ao que ela, íntegra e segura de si, recusava. Dizia que não, que as coisas não eram bem assim. E nisso me enrolara dois anos, relutando a ceder aos meus pedidos de namoro, namoro esse de que eu ainda não tinha dimensão e tomava apenas por praxe. De certo, na sua cabeça de mulher, ela estava a me esperar amadurecer, como aquelas meninas do colegial que, crescendo mais rápido, observam desdenhosas os bobos meninos por quem mais tarde viriam a se enamorar.

            E ela, claro, não podia estar mais certa. Bastou chegar o momento adequado, o momento detalhadamente engendrado pela natureza, para que tudo acontecesse: sem mais nem menos, eu nem mesmo a esperava mais, ela volta correndo aos meus braços dizendo que, sim, ela me namorava! Que, sim, ela também gostava muito de mim! Como fui feliz nesse átimo de momento. Teve noites que sonhei mesmo não acreditar em tal realidade.

            Mas felizmente ela era real. Tão vívida que, por outro lado, também me trouxera logo a seguinte preocupação: minha namorada é tão perfeita, será que estarei a sua altura? Será que lhe sou o bastante? Nesse ensimesmar desperdiçado passei um bocado de tempo. Tempo esse em ela, novamente, veio ao meu socorro, como a mulher que é também um pouco mãe de seu homem. E nesse ponto, ela levantara meu rosto, então cabisbaixo de baixa autoestima, e me fizera olhar para ela. Olhara-me fundo, de um olhar sereno, pacífico. Não me dissera nada. Apenas pegou minha mão e me levou contigo para o mundo, para me ensinar a amar. Eu que nunca soubera ao certo o que é amar, agora amo, sobretudo, ela.

          Ela que mais me entende, que mais está comigo. Eu levanto, ela me dá bom dia. Eu me deito, ela zela meu sono. E nesse cuidar um do outro, estamos hoje numa fase próxima de nosso relacionamento. Não mais a paixão arrebatadora, que muitas vezes mais destrói que constrói. Não mais o ''eu te amo'' que não é amor.....Amor é cuidado, é cumplicidade, é amizade, é carinho. É, sobretudo, dedicação. A dedicação desinteressada e genuína que sabe se preocupar com cônjuge tanto ou mais que consigo, na certeza de que só se está bem quando os dois estão.

            E, enfim, temos tudo isso. E, por isso, sei que ela é a mulher da minha vida. Sonho, pois, no dia em que nos casaremos e, então, multiplicaremos filhos por esse Brasil afora, no ato de medicar que é também reproduzir amor.
Para minha querida e amada, Medicina

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Azeitoma



Conto certificado como Terceiro lugar no Concurso cultural do II Congresso da SAMMG
      

            De uma hipermnésia de fixação fantástica, Gabriel Magalhães fora sempre um estudante distintamente avaliado com as melhores notas do nosso curso de medicina. Entretanto, nada afeito aos pacientes, Gabriel era também distintamente casmurro. Para ele, a relação médico-paciente não passava de um despropósito, um desperdício do seu precioso tempo, que aplicava sempre a se ensimesmar. Não por outro motivo que, por fim, se formara patologista, afinal assim não precisaria, ao seu modo de pensar, trocar palavra sequer com os doentes.

            E foi nesse sentido que se trancafiara no subsolo do Hospital Escola, destrinchando doenças as mais escabrosas. Só saiu à luz precisamente hoje, depois de biopsiar algo muito estranho, alardeando a toda comunidade médica que descobria – Eureca! - um novo tipo morfológico de câncer. Tal feito, maquinava, certamente o alçaria às altas posições que desde há muito aspirava nos seus delírios recônditos de grandeza, e por isso se apressou logo em apresentar o caso aos colegas locais, no salão nobre de nosso hospital.

            Pois bem, todo pomposo, Gabriel demonstrava suas lâminas aos curiosos médicos, que, interrogativos, se perguntavam: Que câncer seria esse, afinal? Enquanto isso, aos moldes catedráticos, ao lado, jazia o doente internado, ignoradamente sôfrego numa maca.

            E eis que nessa cena, cá do meu ângulo crítico, pude ver se achegar timidamente uma miúda estudante, aproximando-se do leito do doente, que até então só conhecíamos por C.E. Essa estudante, no entanto, lhe perguntou o nome, quis saber das suas moléstias e dos seus desesperos. Acalentou-lhe. E conversa vai, conversa vem, consegue então saber de Carlos Eduardo: “desde a janta na casa de minha irmã, com sua famosa maionese de azeitona, que ando mal desse jeito, doutora”.

            Muito perspicaz, pergunta a pequena aspirante à doutora: ‘’Tinha caroço, seu Carlos Eduardo?’’...Acompanhante de seu raciocínio, que logo afigurava um caroço impactado e estacionado num divertículo intestinal , não me aguentei: gritei lá do canto onde observava esse quadro, ao mesmo tempo esdrúxulo e tocante: ‘’Ora, esse câncer é um azeitoma!’

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Bebendo sartrianamente



''Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém'' Paulo de Tarso

Nada ponderadas, as opiniões sempre insistem em se dispor diametralmente opostas. É assim que, se de um lado, há os que advogam contra o consumo de bebidas de nossa parte, estudantes de medicina; de outro, há os que, também de nossa parte, brindam a libertinagem sem qualquer consciência de responsabilização. Dos primeiros, sempre ouvi que semelhante comportamento etilista não é coisa de futuros médicos; assim como, dos segundos, sempre ouvi que, se tanto não bebessem, não se aproveitaria a vida universitária. Ora, como se não existisse por debaixo do jaleco um homem tão dionísico como são todos os outros, e como não se cobrasse a responsabilidade num sofrimento alheio, ambos pecam pelos seus excessos. Pois que a bebida, como todo objeto inanimado,realmente nada tem de má em si. Em torno dela reúnem-se os amigos, fluem as conversas, relacionam-se os amantes. Através dela podemos enfim purgar nosso estresse, que é grande, aliás. Mas, antes que tomem isso por uma apologia disfarçada ao álcool, quero dizer que não milito para nenhum desses dois partidos. Absolutamente, não comungo da ideia de endeusamento médico que subjaz no argumento de que nossa classe deva se privar dos prazeres humanos, muito menos acho que me chafurdar na sarjeta, depois de um porre, seja prazeroso. Ao contrário, em uníssono com existencialismo sartriano, digo que a ´´liberdade não é fazer o que se quer, mas querer o que se faz´´. Façamos, pois nossos festejos, com todo o direito de desfrutar que temos, mas os façamos com a certeza de que a vida que escolhemos demanda responsabilidades com as quais queremos, por nós mesmos, arcar.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Ridiculamente séptico





Quem muito anda pela Avenida Alfredo Balena, na área hospitalar de Belo Horizonte, não pode deixar de notar certa brancura nas ruas. Não pela limpeza do local, obviamente. Longe disso, sabemos que o centro belorizontino é uma poluição só. Mas a tal brancura está, isso sim, na vestimenta das pessoas, que estranhamente andam todas de branco. E não simplesmente branco, a exemplo de camisetas e blusas brancas, como seria de se esperar nesse tempo de calor tão causticante. Não, para tanto semelhante roupagem - hipotetizo eu - teria pouca área refletiva, afinal não tem manga nem se estende aos joelhos. Assim é que a moda na Av. Alfredo Balena são nada menos que os jalecos, os quais compreensivamente atendem aos supostos requisitos de reflexão: têm manga e se estendem aos joelhos. Além do mais, pense só, são utensílios muito versáteis, pois que podem servir de capa em situações de chuva. E – ah! - também eles podem se transformar em perfeitos lenços babadores, ideais para se proteger dos típicos espirros de sugos macarronences durante o almoço. Entrentato, tantos atributos por si só - hipotetizo novamente - não justificariam todo esse moby ariel, afinal também existem, como se deve ser, roupas frescas para o calor, capa de chuva para a chuva, e lenços babadores para almoço. Pois bem, deve existir então coisa a mais que justifique essa estranha situação. E, pensando no universo da moda, que algo a mais seria esse senão a vaidade...vaidade essa que, convenhamos, não está em preservar a autoimagem do ridículo.