quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A arte pela arte da atenção


Conto premiado como Primeiro lugar no Concurso de contos da XXI
Conferência Wonca 

  "Você sabe que está experimentando a poesia, quando na vida cotidiana, na vida normal, de repente alguma coisa lhe chama atenção. Uma coisa mais corriqueira". Adélia Prado (em Perdões)
        
        
Gabriel era daquelas pessoas que parece agraciada com algum dom especial. Tinha ele tamanha sensibilidade para expressão artística que bastava catar qualquer coisa sem graça para lhe dar um quê de admirável. Tanto é assim que, certa vez, ainda jovem, fez do pobre show de talentos escolar um espetáculo à parte, pois se conjugavam nele habilidades muitas, desde a escrita até o canto, passando pela pintura. E desse modo passara sua juventude, ajuntando palavras em poemas para conquistar as garotas do colégio, ensaiando trechos de músicas que tocava nos bares locais e rabiscando esboços do que poderia dar uma boa exposição de desenhos. De forma tal que, aos olhos dos que o viam, estava ali um artista nato. 
           
            Mas outro tanto pensava seu pai, Carlos. A projeção paterna para o futuro do filho estava em seguir, tal como ele próprio, os passos da medicina. E, muito austero como era Carlos, ou Sr. Dr. Carlos, como gostava de ser chamado, não redava ele pé dessa decisão. Queria que o filho mantivesse-lhe a reputação de excelente cardiologista que conquistara, e assim dava por certo. 
         
           Temendo como temia ao pai, à Gabriel só restou acatar a ordem. Não haveria argumento que pudesse convencer ao pai de que, ora, também a arte tinha seu lugar de respeito. Pelo contrário, aos olhos do rígido doutor, arte era coisa de gente desocupada, que só vive a devanear, sem compromisso com as coisas objetivas da realidade.
           
          Gabriel, entretanto, por mais que estivesse resignado de seu destino, quis saber do pai se poderia ao menos encontrar um bocado de arte na medicina. O pai, contudo, pouco conhecia o filho e simplesmente deu de ombros, não ligando ali a importância da pergunta. Iniciava assim, naquele instante, a morte de um grande sonhador.
           
             Morte essa que foi, ainda por cima, lenta e dolorosa. Os longos e duradouros anos do curso de medicina foram minguando, pouco a pouco, todos os idealismos que o animavam. De um lado, os professores, com seu tom imperativo, que só faziam entulhar conteúdo de natureza biomédica, a ponto tal que, mesmo sem querer, as preocupações de ordem pessoal e subjetiva eram secundarizadas. De outro, os colegas, acirrados competidores, que só faziam legitimar semelhante modelo despropositado de ensino, na medida em que reprovavam coletivamente qualquer sinal de fraqueza ou inadaptabilidade. Foi desse modo, pois, que, já no final do sexto ano do curso médico, Gabriel dava por sugada toda sua sensibilidade. Tanto que, nesse período derradeiro, ele pode se perceber estranhamente tão emburrecido quanto achava seu pai.
           
            Foi nesse ponto que, desconhecedor de si mesmo, Gabriel se deparou, como que por acaso, com um cartaz que convidava a uma palestra os acadêmicos que, apesar de estarem prestes a formar, ainda se sentiam desnorteados sobre qual especialidade seguir. O cartaz, um tanto quanto estranho, era intitulado como ‘’A primária arte de cuidar, a especialidade do Médico de Família e Comunidade’’. Intrigado com semelhante convite, Gabriel ficou tentado a ir. Na sua faculdade, tradicional como era, nunca havia ele sequer ouvido algo parecido. Que tipo de médico seria aquele, afinal, perguntava-se ansiosamente.
                       Pelo sim, pelo não, Gabriel foi lá conferir. Ao chegar à sala marcada, sentou-se timidamente ao fundo e pôs-se a escutar o que falava o intrépido palestrante. Luis, como se apresentou, era, de fato, um médico bastante excêntrico. Dizia ele, empolgadamente, sobre coisas como decisão compartilhada, centralidade na pessoa e abordagem familiar, conceitos que muito surpreenderam a Gabriel. E ia ele boquiarberto escutando enquanto, em suas reminiscências, recobrava à memoria varias situações nas quais, como aluno entregue a ordem das coisas, tomara atitudes reprováveis desse novo ponto de vista. Foi nesse momento que Gabriel não conteve suas lagrimas e deixou extravasar a angústia que por muito tempo o consumia, na procura, até então não satisfeita, de uma medicina melhor do que a que lhe apresentada.

            Luis, por seu turno, encerrava maravilhosamente a palestra e, perceptivo como era, observou que o jovem aluno lacrimejava e, de modo empático, aproximou-se. Repousou mansamente a mão sobre os ombros do rapaz e quis saber da sua dor. Gabriel, recompondo-se, apenas repetiu a pergunta que outrora havia feito a seu pai: Existe mesmo arte no que o senhor faz? Ao que respondeu calmamente o Médico de Família e Comunidade, propondo enfim que Gabriel o acompanhasse nas suas lidas diárias para ele mesmo o comprovasse. 

            Gabriel foi. E hoje, passado o período da residência médica que escolheu conscientemente como futuro, pode-se dizer que o sonho de artista reviveu. Apesar de não ter ajeitado algum poema célebre, composto alguma canção sensacional ou aberto alguma exposição de pintura, como o faria não fosse o impedimento paterno, ainda assim Gabriel pode, enfim, experimentar ser o artista que sempre foi em potencial: Gabriel tornou-se Médico de Família e Comunidade.
           
          E, como tal, segue ele atuante no Centro de Saúde São Sebastião, palco em que a sua habilidosa comunicabilidade sabe descortinar, com efeito terapêutico, as dores e as delícias da vida das muitas pessoas que cuida. Lá, centrado nelas, Gabriel também recita poemas, mas agora o faz para, por exemplo, animar a vozinha infeliz; também grava músicas, mas agora o faz para, por exemplo, encorajar a cessação da moça tabagista; e também rabisca desenhos, mas agora o faz para, por exemplo, ilustrar a receita que facilita o entendimento do senhor analfabeto.
         
          Desse modo, a arte que se desperdiçaria encontrou na arte da atenção o ressignificado que permite a Gabriel, como Médico de Família e Comuidade, reconhecer na prosaica vida cotidiana as coisas especiais que merecem cuidado.



sábado, 3 de setembro de 2016

Acesso à primeira divisão


Conto premiado no XIII Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade


              Como todo e qualquer brasileiro, os médicos do hospital ‘’Medicocêntrico’’ também não deixavam de bater uma bolinha. Ainda que nas raras ocasiões de folga, organizavam eles as suas peladas, imaginando que encontrariam  ai uma boa ocasião para se desestressar do trabalho.

            Ledo engano, também no futebol mantinham-se os colegas médicos muito competitivos entre si: os superespecialistas mais sabichões não redavam pé dos seus achismos futebolescos; os cirúrgiões, muito broncos, não toleravam qualquer presepada dos mais pernas-de-pau; e os imaginologistas, folgadões que eram, vira e mexe acabavam pegos no impedimento da ‘’banheira’’. E nisso, o que era pra ser uma divertida partida, logo se tornava o irônico retrato do que frequentemente acontecia no próprio hospital: o time da saúde batendo cabeça.

            Contudo, por mais capengas que fossem, um quê de prepotência  os encorajava a  tentar, vez ou outra, a sorte no campeonato amador do bairro. Competição essa, entranto, que, anos após anos, era sempre ganha pelo terrível e temido time chamado de ‘’Doença’’. Não por acaso, pois o time dos médicos, um dos poucos que lhe podia fazer frente, não era, de longe, time organizado o suficiente para o páreo.

            Nesse ínterim, antes mesmo do início do campeonato, eis que chega ao corpo clínico do hospital uma nova figura. Contratado para desenvolver um novo programa de residência, o Médico de Família e Comunidade surge como um estranho no ninho. Perguntavam-se as demais especialidades, quem seria esse outro profissional, ‘’que tipo de médico seria esse, afinal?’’. ‘’É apenas o médico do postinho’’, respondiam alguns.

            Mas, frente a tamanha resistência preconceituosa, a amistosidade do Médico de Família soube, a seu modo, quebrar o gelo. Pouco a pouco, o estranhado médico foi conquistando, através de grande habilidade de comunicação, a amizade dos colegas. Tanto foi assim que esses, passada a má primeira impressão, trataram de convidar o novo amigo para o joguinho de futebol.

            Nesse novo terreno do ‘’exercício’’ médico, contudo, o Médico de família também teria de conquistar o seu espaço. E até que isso acontecesse, ficava ele aguardando a oportunidade no banco, apenas como eventual tapa-buraco.

            Todavia, essa oportunidade não tardou a acontecer. Numa das partidas do intentado campeonato do bairro, o Clínico Internista, até então o capitão do desorientado time, machucou-se. E, sem opções melhores, eis que mandam substituí-lo o Médico de Família.

            Enfim dentro das quatro linhas, quis ele, então, fazer valer a espera. De posse dos seus conhecimentos sobre a rede de atenção, ele os aplica em analogia ao futebol dos médicos. E, tomando pra si a faixa de coordenador do sistema, o Médico de Família convoca o time a uma capacitação no intervalo do jogo.

            Lá, como era de se esperar, ele encontra ainda alguma resistência. Os superespecialistas desconfiavam dos níveis de evidência da metanálise futebolística apresentada, os cirurgiões não quiseram crer na força do trabalho em equipe e os imaginologistas, por sua vez, só fizeram caçoar do conceito de prevenção quaternária dos ataques sem objetivo.

            Diante disso, percebendo a surdez coletiva aos argumentos técnicos, o Médico de Família apela, então, para sua habilidade mais contagiante: o amor à camisa! E num discurso cheio de entusiasmo, ele levanta a moral do time, pedindo que, enfim, experimentassem jogar, não mais no intuito de apenas se desestressar, mas pelo puro prazer fazê-lo. 

            E, num átimo de instante, conquistados pela exortação, todos os integrantes da equipe médica se viram recordando aquele mesmo desejo de menino que sonhava em ser jogador quando crescesse, assim como, um dia,  os impulsionou intimamente à carreira a tendência autruista. E, com isso em mente, eles jogaram como nunca e, por fim, conseguiram virar a difícil partida.

            Por esse grande feito, o Médico de Família, agora líder do grupo, saiu ovacionado, ganhando o respeito de todos. Os companheiros, ainda embasbacados, até se interrogavam ‘’como podia esse médico fazer tanto com tão pouco’’, mas, mesmo duvidosos, agora depositavam sua confiança no MFC – como então carinhosamente passaram à chamá-lo.

            As cememorações, entretanto, logo deram lugar ao temor. Em silêncio, todos sabiam que aquele fora o menor dos desafios: ainda faltava o jogo decisivo contra o terrível time da ‘’Doença’’, do qual nunca tinham conseguido ganhar.

            Não obstante, o Médico de Família contava com uma carta na manga, uma poderosa arma que até então nenhum dos médicos sequer pensara em usar ou, se o fizera,  desconsiderou-lhe a importância: a torcida! Sim, a torcida, disse o MFC em alto e bom tom. ‘’Precisamos trazer os pacientes para serem o camisa 12 do nosso time!’’

            Deslumbrados, alguns dos médicos, mais céticos, acharam aquela ideia das mais absurdas e outros, dentre os mais antigos, chegaram mesmo a vociferar que o campo não era lugar para paciente. Mas, o MFC estava com moral, era o bola cheia da vez. E, pelo sim, pelo não, acabaram os companheiros acatando a idéia.

            Assim, para os preparativos do grande jogo, o MFC pensou em tudo: visitou cada um dos pacientes, a quem tratou por pessoa, e fez um convite todo especial. Orientou-os sobre a importância da participação de cada um no jogo contra a ‘’Doença’’ e sobre como cada um poderia contribuir.

            Deixou a escolha, porém, a cargo da decisão compartilhada e, mesmo àqueles que encontraram alguma dificuldade, movimentou recursos comunitários para driblá-la. Aos acamados, por exemplo, trouxe a televisão para assistir ao jogo que seria transmitido, e ,aos cegos, providencou o radinho para escutarem os melhores lances. 

            Já para coordenar toda essa movimentação, o MFC não se envergonhou de solicitar, com todo o seu jeitinho, a ajuda dos outros profissionais. E todos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, etc, todos responderam prontamente, sentindo-se bem por serem, enfim, devidamente envolvidos em semelhante projeto.

            Assim é que, no dia da finalíssima do campeonato, o campinho do bairro estava todo lotado, os radinhos e as televisões todas sintonizadas. Todo mundo, enfim, ligado para ver o grande clássico: Saúde x Doença!

            E o jogo, naturalmente, iniciou-se muito difícil. A doença não dava tregua aos médicos e esses, infelizmente, só se defendiam sob a pressão nosológica. Por várias vezes, inclusive o time da Doença quase marca gol.

            Por essa dificuldade, contudo, o MFC, mestre da epidemiologia, já esperava. Não por outro motivo, organizou o time para saber contra-atacar a ‘’Doença’’: estabilizar rapidamente os ataques agudos, através da tática RUE; sem deixar que os ataques crônicos agudizassem, através da tática RPDC.

            E tudo isso sempre com diálogo entre os jogadores de cada um dos níveis de atenção, com referências e contra-referências precisas. Cada um com seu papel,  jogavam todos para o time e pelo time, sem estrelismos. Assim, o MFC, lá da base, levava a bola até o meio de campo, verificava as possibilidades e, como um maestro, encaminhava a bola para os especialistas da frente.

            Esses, por sua vez, assuntavam à area com dribles de craque, a fim de surpreender alguma chance penetrar na defesa da Doença. Tentavam arrematar o balaço cerca 15% das vezes, mostraram as estatísticas do show do intervalo.  

            Só que ainda assim o jogo continuava apertado, e o empate infelizmente favorecia o melhor time da fase pregressa, o invicto time da Doença. Foi quando o MFC foi a beira do campo conclamar a torcida a seu papel. E os pacientes, empoderados previamente na corresponsabilização, como tinham sido instruído nas visitações do MFC, fizeram bonito: trataram de vestir a camisa e entoaram fortemente os berros de energização, em coro.

            Assim, em uníssono, as vozes ecoram por todo campo, fazendo vibrar o coração dos médicos, os quais, reforçados pela presença do camisa 12, perpetraram um ataque fulminante. E o balaço furou a rede!!

            Ora, naquele momento, nada podia ser mais brilhante. Fora certamente um momento mágico, um momento único. Algo inédito acontecia ali. O acamado que via televisão se levantou, o cego que ouvia o radinho aumentou o som, e a torcida, já presente, não se aguentou na arquibancada e, sem hesitar, invadiu o campo.

            Todos correram, pois, a se abraçar, todos unidos numa só conquista: a saúde vencera a doença! E nos braços da galera, o MFC, era carregado, sob a exautação gloriosa de campões que, com semelhante harmonia, poderiam agora rumar para a primeira divisão do sistema, acessando-a com qualidade.

 

           

 

domingo, 17 de novembro de 2013

Prazer em bem mais que 15 segundos



       A filosofia nietzschiana é farta de profecias da realidade atual. Tanto é assim que atinando com imagem dos ''últimos homens'' temos a estranha sensação de nos deparamos com nós mesmos, num encarar especular que, se a princípio angustia, também nos desobriga por um instante de manter o riso sardônico de canto de lábio, para então rirmos abobados nossa mediocridade. E imagine se nos interpussessem, ainda mais vividamente do que como falou Zaratustra, um espelho desse? Foi o que fez, magistralmente, a companhia Luna Lunera, com a peça ''Prazer'', em cartaz do dia 11 a 22 de dezembro no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte (que recomendo muito, muito fortemente). Ora, nessa peça temos quatro amigos, que, de quebra, ''fossêmos artistas e não pessoas normais'', poderiam ser qualquer um de nós ali no palco do ''drama da vida privada''. Apesar de inquietações, apesar de angústias, apesar de impasses cotidianos, tentam eles - ou tentamos nós - a coragem de buscar a alegria. Mas, por Deus, como tentamos desacreditadamente mal! Como se não aprendêssemos com o ''eterno retorno'' de nossos erros, erramos uma e mais uma vez. E, sobretudo, num erro capital: o erro da busca da perfeição. Queremos porque queremos, por mais sôfrego que isto nos seja, sermos o melhor médico, o melhor marido, o melhor primo, o melhor irmão, o melhor sucedido, etc; afinal há que se sê-lo, é nosso acordo tácito com a dita cuja sociedade. Agora, imaginem só: homens e mulheres que, muito embora estejam susceptíveis a toda a sorte das variáveis probabilísticas complexas dessa nossa vidinha mundana, desejam só, e somente só, a certeza da realização exata dos seus desejos particulares. E nisso, todos ao mesmo tempo, com desejos muitas vezes conflitantes e que não se satisfazem a cada realização. Ora, daí a epidemia de transtornos de humor (sub ou hiper)diagnosticada. E daí a epidemia de prescrições de inibidores seletivos da receptação de serotonina; afinal, há que se manter as aparências, num é mesmo? E, assim, com a lágrima engolida junto ao remédio, afirmamos, num uníssono, em alto e bom tom, sermos felizes, piscando logo os olhos uns aos outros, como querendo manter a quebrantável realidade intocada na sua fragilidade. Eis a autoenganação coletiva. Autoenganação essa que - nossa! - como nos consome, como nos exaure. É tão difícil ser perfeito sem sê-lo. É, para os atores, a mais dificilmente interpretada das peças teatrais. Tão difícil que, muitas vezes, perdidos no afã de nossos processos conflitivos anônimos, sobrevém-nos a ideia suicidógena; essa que, se se não realiza, ou se transveste de problematização eufemísticas ou se abafa sob escapismos efêmeros ( Problematização suicida)...
       Mas, pensem só, e se déssemos fim a essa peça teatral? E se abandonássemos esse baile de máscaras? E  se do baile saíssemos a dançar na chuva confessando libertadoramente nossas imperfeições?! Quão mais fácil a vida, quão mais prazerosa ela!       

Pois bem, vejam a peça e gozem bem mais de 15 segundos...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Obrigado, Doutor!



       
      18 de outubro, dia do médico. E, a contra gosto,  Ernesto Pereira fora dispensado da sua diligência diária. Como se fosse dia 1 maio, outorgaram-lhe folga para que tomasse, enfim, merecido descanso. Precisava estar muito bem apresentável, alegou o diretor médico do hospital, afinal tinha homenagem a receber esta noite na nobre Associação Médica. Seria esse, aliás, evento muito pomposo, sem economias de comes, de bebes e, claro, de bajulação. Já esperando por isso, Ernesto relutava em comparecer, muito humilde que era. Mas tanto insistiram os presidentes da instituição, dizendo da importância da data, sobretudo num tempo de desprestígio da figura médica, que o clínico acabou por ceder aos caprichos. Passara, então, o dia todo inquieto, sem saber o que fazer sem pacientes que cuidar; os quais, por sua vez, estranhando a ausência do bom doutor, que sempre lhes dedicava um dedo de prosa cotidiano, tiveram tempo para atinar, ora, que aquele dia era dia do médico. Dona Maria de Lourdes, muito espirituosa que era, se apressou em dizer, assim, que tal dia não podia passar em branco, e convocou a ala leste a preparar alguma coisinha para o querido Doutor Ernesto Pereira, que, se não pôde vir pela manhã, certamente lhes visitaria a noite. Mas, à noite, estava seu Ernesto na Associação Médica, deslocado como um quadril em Ortolani positivo, numa festa glamorosa que não  lhe combinava. Tanto que, numa roda de conversa, em que jovens médicos gabavam a modernidade dos métodos complementares, Ernesto muito desgostoso arrumara jeito de escapulir, deixando os colegas  enganados nas suas conversas tecnológicas. Saíra à francesa e, com um aperto no coração, pela ausência injustificada para com seus doentes, recobrou sua vontade e, sim, voltara ao hospital. Lá o aguardavam ansiosos os pacientes, que, ao som do elevador, se aquietaram e apagaram as luzes, para pregar a surpresa. Intrigado, Ernesto adentrara no breu da ala leste, tomando grande susto quando, de repente, acendem e entoam a canção de parabéns. Dona Maria de Lourdes, com o bolo de cenoura que mandara a filha preparar, logo se achega ao parabenizado, estendendo-lhe a vela e exclamando que ‘’sabia, doutor, que o senhor viria’’. 
          Já lá na Associação Médica outro tanto acontecia: o bom doutor tinha sumido e, para a homenagem, - que coisa! – não tinham nenhum outro sequer para lhe substituir a altura.


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A minha namorada


Conto premiado como Primeiro Lugar no Concurso Cultural do II Congresso da SAMMG

             Tivéssemos filhos, essa seria, numa analogia cômica, a estória  ''how I met your mother'' que lhes contaria. De todo modo, ainda que não os tenha, é certo que os teremos, muitos e muitos, num futuro breve, que vivo a primar. Por agora, no entanto, já me contenta namorá-la, e é desse relacionamento que conto aqui:

            A conheci desde há muito, ainda na minha tenra infância. Poderia cá mentir que me lembro exatamente desse primeiro encontro, na intenção piegas de sugerir ‘’amor a primeira vista’’, mas realmente me escapa a memória daquele cérebro imielinizado. Apesar disso, conta minha vó que aos 3 anos já eu brincara muito com ela, na mágica fantasia de criança.

           Passada essa fase, a vida ocupou-se de nos afastar. Talvez a minha rebeldia impensada dos tempos turbulentos da adolescência a tenha assustado. Mas, que coisa, como mulher de vagabundo, ela relutara em ficar comigo, regressando meiga para me cativar. Hoje posso dizer que foi justamente ela quem soube me dar jeito na vida. E nessa vida a dois, passamos pelas mesmas fases interrelacionais por que passam os casais típicos.

            Primeiro a paixão. Nos entregamos sofregamente, virando noites e noites. Por esse calor febril também brigamos, como brigamos. E isso porque eu, num afã desesperado e possessivo a queria imediatamente para mim, ao que ela, íntegra e segura de si, recusava. Dizia que não, que as coisas não eram bem assim. E nisso me enrolara dois anos, relutando a ceder aos meus pedidos de namoro, namoro esse de que eu ainda não tinha dimensão e tomava apenas por praxe. De certo, na sua cabeça de mulher, ela estava a me esperar amadurecer, como aquelas meninas do colegial que, crescendo mais rápido, observam desdenhosas os bobos meninos por quem mais tarde viriam a se enamorar.

            E ela, claro, não podia estar mais certa. Bastou chegar o momento adequado, o momento detalhadamente engendrado pela natureza, para que tudo acontecesse: sem mais nem menos, eu nem mesmo a esperava mais, ela volta correndo aos meus braços dizendo que, sim, ela me namorava! Que, sim, ela também gostava muito de mim! Como fui feliz nesse átimo de momento. Teve noites que sonhei mesmo não acreditar em tal realidade.

            Mas felizmente ela era real. Tão vívida que, por outro lado, também me trouxera logo a seguinte preocupação: minha namorada é tão perfeita, será que estarei a sua altura? Será que lhe sou o bastante? Nesse ensimesmar desperdiçado passei um bocado de tempo. Tempo esse em ela, novamente, veio ao meu socorro, como a mulher que é também um pouco mãe de seu homem. E nesse ponto, ela levantara meu rosto, então cabisbaixo de baixa autoestima, e me fizera olhar para ela. Olhara-me fundo, de um olhar sereno, pacífico. Não me dissera nada. Apenas pegou minha mão e me levou contigo para o mundo, para me ensinar a amar. Eu que nunca soubera ao certo o que é amar, agora amo, sobretudo, ela.

          Ela que mais me entende, que mais está comigo. Eu levanto, ela me dá bom dia. Eu me deito, ela zela meu sono. E nesse cuidar um do outro, estamos hoje numa fase próxima de nosso relacionamento. Não mais a paixão arrebatadora, que muitas vezes mais destrói que constrói. Não mais o ''eu te amo'' que não é amor.....Amor é cuidado, é cumplicidade, é amizade, é carinho. É, sobretudo, dedicação. A dedicação desinteressada e genuína que sabe se preocupar com cônjuge tanto ou mais que consigo, na certeza de que só se está bem quando os dois estão.

            E, enfim, temos tudo isso. E, por isso, sei que ela é a mulher da minha vida. Sonho, pois, no dia em que nos casaremos e, então, multiplicaremos filhos por esse Brasil afora, no ato de medicar que é também reproduzir amor.
Para minha querida e amada, Medicina