sábado, 3 de setembro de 2016

Acesso à primeira divisão


Conto premiado no XIII Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade


              Como todo e qualquer brasileiro, os médicos do hospital ‘’Medicocêntrico’’ também não deixavam de bater uma bolinha. Ainda que nas raras ocasiões de folga, organizavam eles as suas peladas, imaginando que encontrariam  ai uma boa ocasião para se desestressar do trabalho.

            Ledo engano, também no futebol mantinham-se os colegas médicos muito competitivos entre si: os superespecialistas mais sabichões não redavam pé dos seus achismos futebolescos; os cirúrgiões, muito broncos, não toleravam qualquer presepada dos mais pernas-de-pau; e os imaginologistas, folgadões que eram, vira e mexe acabavam pegos no impedimento da ‘’banheira’’. E nisso, o que era pra ser uma divertida partida, logo se tornava o irônico retrato do que frequentemente acontecia no próprio hospital: o time da saúde batendo cabeça.

            Contudo, por mais capengas que fossem, um quê de prepotência  os encorajava a  tentar, vez ou outra, a sorte no campeonato amador do bairro. Competição essa, entranto, que, anos após anos, era sempre ganha pelo terrível e temido time chamado de ‘’Doença’’. Não por acaso, pois o time dos médicos, um dos poucos que lhe podia fazer frente, não era, de longe, time organizado o suficiente para o páreo.

            Nesse ínterim, antes mesmo do início do campeonato, eis que chega ao corpo clínico do hospital uma nova figura. Contratado para desenvolver um novo programa de residência, o Médico de Família e Comunidade surge como um estranho no ninho. Perguntavam-se as demais especialidades, quem seria esse outro profissional, ‘’que tipo de médico seria esse, afinal?’’. ‘’É apenas o médico do postinho’’, respondiam alguns.

            Mas, frente a tamanha resistência preconceituosa, a amistosidade do Médico de Família soube, a seu modo, quebrar o gelo. Pouco a pouco, o estranhado médico foi conquistando, através de grande habilidade de comunicação, a amizade dos colegas. Tanto foi assim que esses, passada a má primeira impressão, trataram de convidar o novo amigo para o joguinho de futebol.

            Nesse novo terreno do ‘’exercício’’ médico, contudo, o Médico de família também teria de conquistar o seu espaço. E até que isso acontecesse, ficava ele aguardando a oportunidade no banco, apenas como eventual tapa-buraco.

            Todavia, essa oportunidade não tardou a acontecer. Numa das partidas do intentado campeonato do bairro, o Clínico Internista, até então o capitão do desorientado time, machucou-se. E, sem opções melhores, eis que mandam substituí-lo o Médico de Família.

            Enfim dentro das quatro linhas, quis ele, então, fazer valer a espera. De posse dos seus conhecimentos sobre a rede de atenção, ele os aplica em analogia ao futebol dos médicos. E, tomando pra si a faixa de coordenador do sistema, o Médico de Família convoca o time a uma capacitação no intervalo do jogo.

            Lá, como era de se esperar, ele encontra ainda alguma resistência. Os superespecialistas desconfiavam dos níveis de evidência da metanálise futebolística apresentada, os cirurgiões não quiseram crer na força do trabalho em equipe e os imaginologistas, por sua vez, só fizeram caçoar do conceito de prevenção quaternária dos ataques sem objetivo.

            Diante disso, percebendo a surdez coletiva aos argumentos técnicos, o Médico de Família apela, então, para sua habilidade mais contagiante: o amor à camisa! E num discurso cheio de entusiasmo, ele levanta a moral do time, pedindo que, enfim, experimentassem jogar, não mais no intuito de apenas se desestressar, mas pelo puro prazer fazê-lo. 

            E, num átimo de instante, conquistados pela exortação, todos os integrantes da equipe médica se viram recordando aquele mesmo desejo de menino que sonhava em ser jogador quando crescesse, assim como, um dia,  os impulsionou intimamente à carreira a tendência autruista. E, com isso em mente, eles jogaram como nunca e, por fim, conseguiram virar a difícil partida.

            Por esse grande feito, o Médico de Família, agora líder do grupo, saiu ovacionado, ganhando o respeito de todos. Os companheiros, ainda embasbacados, até se interrogavam ‘’como podia esse médico fazer tanto com tão pouco’’, mas, mesmo duvidosos, agora depositavam sua confiança no MFC – como então carinhosamente passaram à chamá-lo.

            As cememorações, entretanto, logo deram lugar ao temor. Em silêncio, todos sabiam que aquele fora o menor dos desafios: ainda faltava o jogo decisivo contra o terrível time da ‘’Doença’’, do qual nunca tinham conseguido ganhar.

            Não obstante, o Médico de Família contava com uma carta na manga, uma poderosa arma que até então nenhum dos médicos sequer pensara em usar ou, se o fizera,  desconsiderou-lhe a importância: a torcida! Sim, a torcida, disse o MFC em alto e bom tom. ‘’Precisamos trazer os pacientes para serem o camisa 12 do nosso time!’’

            Deslumbrados, alguns dos médicos, mais céticos, acharam aquela ideia das mais absurdas e outros, dentre os mais antigos, chegaram mesmo a vociferar que o campo não era lugar para paciente. Mas, o MFC estava com moral, era o bola cheia da vez. E, pelo sim, pelo não, acabaram os companheiros acatando a idéia.

            Assim, para os preparativos do grande jogo, o MFC pensou em tudo: visitou cada um dos pacientes, a quem tratou por pessoa, e fez um convite todo especial. Orientou-os sobre a importância da participação de cada um no jogo contra a ‘’Doença’’ e sobre como cada um poderia contribuir.

            Deixou a escolha, porém, a cargo da decisão compartilhada e, mesmo àqueles que encontraram alguma dificuldade, movimentou recursos comunitários para driblá-la. Aos acamados, por exemplo, trouxe a televisão para assistir ao jogo que seria transmitido, e ,aos cegos, providencou o radinho para escutarem os melhores lances. 

            Já para coordenar toda essa movimentação, o MFC não se envergonhou de solicitar, com todo o seu jeitinho, a ajuda dos outros profissionais. E todos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, etc, todos responderam prontamente, sentindo-se bem por serem, enfim, devidamente envolvidos em semelhante projeto.

            Assim é que, no dia da finalíssima do campeonato, o campinho do bairro estava todo lotado, os radinhos e as televisões todas sintonizadas. Todo mundo, enfim, ligado para ver o grande clássico: Saúde x Doença!

            E o jogo, naturalmente, iniciou-se muito difícil. A doença não dava tregua aos médicos e esses, infelizmente, só se defendiam sob a pressão nosológica. Por várias vezes, inclusive o time da Doença quase marca gol.

            Por essa dificuldade, contudo, o MFC, mestre da epidemiologia, já esperava. Não por outro motivo, organizou o time para saber contra-atacar a ‘’Doença’’: estabilizar rapidamente os ataques agudos, através da tática RUE; sem deixar que os ataques crônicos agudizassem, através da tática RPDC.

            E tudo isso sempre com diálogo entre os jogadores de cada um dos níveis de atenção, com referências e contra-referências precisas. Cada um com seu papel,  jogavam todos para o time e pelo time, sem estrelismos. Assim, o MFC, lá da base, levava a bola até o meio de campo, verificava as possibilidades e, como um maestro, encaminhava a bola para os especialistas da frente.

            Esses, por sua vez, assuntavam à area com dribles de craque, a fim de surpreender alguma chance penetrar na defesa da Doença. Tentavam arrematar o balaço cerca 15% das vezes, mostraram as estatísticas do show do intervalo.  

            Só que ainda assim o jogo continuava apertado, e o empate infelizmente favorecia o melhor time da fase pregressa, o invicto time da Doença. Foi quando o MFC foi a beira do campo conclamar a torcida a seu papel. E os pacientes, empoderados previamente na corresponsabilização, como tinham sido instruído nas visitações do MFC, fizeram bonito: trataram de vestir a camisa e entoaram fortemente os berros de energização, em coro.

            Assim, em uníssono, as vozes ecoram por todo campo, fazendo vibrar o coração dos médicos, os quais, reforçados pela presença do camisa 12, perpetraram um ataque fulminante. E o balaço furou a rede!!

            Ora, naquele momento, nada podia ser mais brilhante. Fora certamente um momento mágico, um momento único. Algo inédito acontecia ali. O acamado que via televisão se levantou, o cego que ouvia o radinho aumentou o som, e a torcida, já presente, não se aguentou na arquibancada e, sem hesitar, invadiu o campo.

            Todos correram, pois, a se abraçar, todos unidos numa só conquista: a saúde vencera a doença! E nos braços da galera, o MFC, era carregado, sob a exautação gloriosa de campões que, com semelhante harmonia, poderiam agora rumar para a primeira divisão do sistema, acessando-a com qualidade.