Gabriel era daquelas pessoas que parece agraciada com algum dom especial. Tinha ele tamanha sensibilidade para expressão artística que bastava catar qualquer coisa sem graça para lhe dar um quê de admirável. Tanto é assim que, certa vez, ainda jovem, fez do pobre show de talentos escolar um espetáculo à parte, pois se conjugavam nele habilidades muitas, desde a escrita até o canto, passando pela pintura. E desse modo passara sua juventude, ajuntando palavras em poemas para conquistar as garotas do colégio, ensaiando trechos de músicas que tocava nos bares locais e rabiscando esboços do que poderia dar uma boa exposição de desenhos. De forma tal que, aos olhos dos que o viam, estava ali um artista nato.
Mas outro tanto pensava seu pai, Carlos. A projeção paterna para o futuro do filho estava em seguir, tal como ele próprio, os passos da medicina. E, muito austero como era Carlos, ou Sr. Dr. Carlos, como gostava de ser chamado, não redava ele pé dessa decisão. Queria que o filho mantivesse-lhe a reputação de excelente cardiologista que conquistara, e assim dava por certo.
Temendo como temia ao pai, à Gabriel só restou acatar a ordem. Não haveria argumento que pudesse convencer ao pai de que, ora, também a arte tinha seu lugar de respeito. Pelo contrário, aos olhos do rígido doutor, arte era coisa de gente desocupada, que só vive a devanear, sem compromisso com as coisas objetivas da realidade.
Gabriel, entretanto, por mais que estivesse resignado de seu destino, quis saber do pai se poderia ao menos encontrar um bocado de arte na medicina. O pai, contudo, pouco conhecia o filho e simplesmente deu de ombros, não ligando ali a importância da pergunta. Iniciava assim, naquele instante, a morte de um grande sonhador.
Morte essa que foi, ainda por cima, lenta e dolorosa. Os longos e duradouros anos do curso de medicina foram minguando, pouco a pouco, todos os idealismos que o animavam. De um lado, os professores, com seu tom imperativo, que só faziam entulhar conteúdo de natureza biomédica, a ponto tal que, mesmo sem querer, as preocupações de ordem pessoal e subjetiva eram secundarizadas. De outro, os colegas, acirrados competidores, que só faziam legitimar semelhante modelo despropositado de ensino, na medida em que reprovavam coletivamente qualquer sinal de fraqueza ou inadaptabilidade. Foi desse modo, pois, que, já no final do sexto ano do curso médico, Gabriel dava por sugada toda sua sensibilidade. Tanto que, nesse período derradeiro, ele pode se perceber estranhamente tão emburrecido quanto achava seu pai.
Foi nesse ponto que, desconhecedor de si mesmo, Gabriel se deparou, como que por acaso, com um cartaz que convidava a uma palestra os acadêmicos que, apesar de estarem prestes a formar, ainda se sentiam desnorteados sobre qual especialidade seguir. O cartaz, um tanto quanto estranho, era intitulado como ‘’A primária arte de cuidar, a especialidade do Médico de Família e Comunidade’’. Intrigado com semelhante convite, Gabriel ficou tentado a ir. Na sua faculdade, tradicional como era, nunca havia ele sequer ouvido algo parecido. Que tipo de médico seria aquele, afinal, perguntava-se ansiosamente.
Luis, por seu turno, encerrava maravilhosamente a palestra e, perceptivo como era, observou que o jovem aluno lacrimejava e, de modo empático, aproximou-se. Repousou mansamente a mão sobre os ombros do rapaz e quis saber da sua dor. Gabriel, recompondo-se, apenas repetiu a pergunta que outrora havia feito a seu pai: Existe mesmo arte no que o senhor faz? Ao que respondeu calmamente o Médico de Família e Comunidade, propondo enfim que Gabriel o acompanhasse nas suas lidas diárias para ele mesmo o comprovasse.
Gabriel foi. E hoje, passado o período da residência médica que escolheu conscientemente como futuro, pode-se dizer que o sonho de artista reviveu. Apesar de não ter ajeitado algum poema célebre, composto alguma canção sensacional ou aberto alguma exposição de pintura, como o faria não fosse o impedimento paterno, ainda assim Gabriel pode, enfim, experimentar ser o artista que sempre foi em potencial: Gabriel tornou-se Médico de Família e Comunidade.
E, como tal, segue ele atuante no Centro de Saúde São Sebastião, palco em que a sua habilidosa comunicabilidade sabe descortinar, com efeito terapêutico, as dores e as delícias da vida das muitas pessoas que cuida. Lá, centrado nelas, Gabriel também recita poemas, mas agora o faz para, por exemplo, animar a vozinha infeliz; também grava músicas, mas agora o faz para, por exemplo, encorajar a cessação da moça tabagista; e também rabisca desenhos, mas agora o faz para, por exemplo, ilustrar a receita que facilita o entendimento do senhor analfabeto.
Desse modo, a arte que se desperdiçaria encontrou na arte da atenção o ressignificado que permite a Gabriel, como Médico de Família e Comuidade, reconhecer na prosaica vida cotidiana as coisas especiais que merecem cuidado.